As mortes da Faixa Azul

Bicicleteiros
12 min readMar 1, 2024

--

Imagem de sinistro ocorrido na Faixa Azul da Av. 23 de Maio (Fonte: Youtube)

Parte 1 — A mentira das Zero Mortes

N o dia 23 de Setembro de 2022, à 1:26 da manhã, a conta oficial do Twitter (X) do Corpo de Bombeiros de São Paulo noticiou a morte de mais um motociclista na cidade de São Paulo.

https://twitter.com/BombeirosPMESP/status/1573166925194350592
Notícia de morte de motociclista ocorrida na Av. 23 de Maio no dia 23/09/022

É o tipo de notícia nem chama mais a atenção da mídia. Das 823 pessoas mortas no trânsito paulistano em 2021, segundo o último relatório oficial de sinistros viários de São Paulo, 363 eram ocupantes desse tipo de veículo — praticamente uma por dia. São muitas as especulações sobre os motivos dos motociclistas terem tomado a liderança no quadro macabro de mortes. Mas o fato é que, mesmo no cenário pós-pandemia, cerca de 40% das fatalidades no trânsito da cidade acontecem com pessoas que estavam em cima de uma motocicleta.

A diferença entre o informe do Corpo de Bombeiros e as demais notícias é que no local dessa morte havia uma faixa especial para motociclistas, batizada de FAIXA AZUL, o principal projeto de mobilidade do atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes.

Inicialmente no sentido Santana-Aeroporto na Avenida 23 de Maio, via de trânsito rápido que corta o centro da cidade de norte a sul, a Faixa Azul foi inaugurada em plena festa de aniversário da cidade, 25 de janeiro de 2022. Com um marketing ostensivo, essa faixa estreita com listras azuis intermitentes foi pintada entre uma das faixas de rolamento tradicionais, de forma a atrair o trânsito das motos.

Apesar de ser oficialmente um projeto experimental, a faixa imediatamente começou a ser tratada como a solução mágica para a segurança dos motociclistas, que nos últimos anos se tornaram principais vítimas do perigosíssimo trânsito de São Paulo.

Desde os primeiros meses a prefeitura anunciou o sucesso da ideia. Reportagens na TV, no rádio e uma enxurrada de matérias pagas em todo tipo de mídia mostravam que esse é o caminho a seguir. Ao mesmo tempo, os motociclistas que demandaram a normalização do corredor de motos entre as faixas de veículos, aprovaram-na de imediato. Sentiram-se pela primeira vez incluídos no planejamento do trânsito, ganhando uma faixa própria para vencer a lentidão do o trânsito e assim “desenrolar” os trabalhos.

Desde os primeiros meses da “experiência” a CET a divulga na mídia como um sucesso imediato

O marketing motofaixa não parou por aí. Banners, cartazes e letreiros eletrônicos foram espalhados ao longo da avenida para orientar usuários da via quanto à presença da nova sinalização, ao mesmo tempo em que boa parte do departamento de planejamento Companhia de Engenharia de Tráfego ( CET) foi instruído a expandir a experiência por novas vias da cidade. Pela importância de São Paulo, administradores de outras cidades do país imediatamente começaram a pensar em adotar essa solução.

A Faixa Azul foi desde o começo uma experiência com um resultado pré-definido.

Em janeiro de 2023, quando a experiência completou um ano, o prefeito Nunes anunciou com festa e uma chuva de balões a prova final do sucesso da Faixa Azul: ZERO MORTES.

Se nenhum motociclista perdeu a vida na Faixa Azul da 23 de Maio desde a sua implantação, quer dizer que a cidade pela primeira vislumbrava o sonho da VISÃO ZERO, termo de gestão viária que prega que nenhuma morte no trânsito é aceitável. Criado pelo governo da Suécia nos anos 90 e adotado em sua constituição, o conceito hoje é considerado o estado da arte em segurança viária, usado inclusive pela Organização Mundial da Saúde como a única solução para o problema, que é hoje uma das principais causas mortis no mundo. Solução que finalmente parecia ter chegado aos motociclistas de São Paulo.

No sonho da visão zero paulistana, os motoboys têm para si um espaço revolucionário — que acaba com o risco de morte ao mesmo tempo em que garante a fluidez no trânsito. É um ganha-ganha. As motos passam rápido no corredor de carros engarrafados, fator essencial para os motofretistas e entregadores que recebem por entrega e dependem de quão rápido podem ser nas ruas. Por isso a escolha da Avenida 23 de Maio, a via de trânsito rápido com o maior fluxo de veículos por hora da cidade e que não tem travessias de pedestres, o que poderia trazer riscos ao projeto piloto.

A divulgação de zero mortes só não casava com o que dizia o Corpo de Bombeiros de São Paulo, que noticiou mais um sinistro fatal de um motociclista em fevereiro de 2023.

https://twitter.com/BombeirosPMESP/status/1623246604512768002https://twitter.com/BombeirosPMESP/status/1640509023513374721
Notícia de morte de motociclista ocorrida na 23 de Maio no dia 8/2/2023

No segundo ano da experiência, a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) deu a permissão para a implantação de outros 200 quilômetros de faixas para motos em São Paulo. O órgão é parte do Ministério dos Transportes, cujo titular é Renan Filho do MDB, mesmo partido de Ricardo Nunes. A possível adesão de outros municípios brasileiros ao projeto apresenta-se como um verdadeiro gol de placa da gestão de um prefeito de pouquíssimo carisma e que colhe críticas em diversas áreas de sua administração — mas não na Faixa Azul.

Até poderíamos acreditar no que diz a gestão Ricardo Nunes — se não estivéssemos presenciando um grande apagão de dados sobre a segurança do trânsito, impedindo que a população saiba o que de fato está acontecendo nas ruas de São Paulo

Neste texto vamos explicar como a gestão está escondendo as mortes ocorridas no trânsito de São Paulo (e provavelmente na própria Faixa Azul) para manter a sua narrativa, essencial para as pretensões eleitorais de Ricardo Nunes em 2024.

O Prefeito Ricardo Nunes admira a Faixa Azul e o trânsito da 23 de Maio

Como foi implantada, a Faixa Azul é uma experiência singular. Consiste em uma faixa curta, de pouco mais de um metro, com sinalização de solo básica e pequenos tachões reflexivos grudados no chão. Indicam a separação, mas não promovem nenhuma barreira física entre carros e motos. Ao contrário das primeiras motofaixas paulistanas, que foram feitas no bordo esquerdo da via, ela ocupa uma faixa intermediária da pista. Não foi difícil para os engenheiros da CET chegarem nesse desenho. Ele só oficializa o comportamento habitual dos motoboys brasileiros de transitarem rapidamente no corredor entre as faixas de carros, especialmente nos engarrafamentos.

Esse tipo de tráfego é ilegal em diversos países, e quase foi no Brasil. Chegou a ser proibido no primeiro texto do Código de Trânsito Brasileiro de 1997, mas foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) após pressão imediata das montadoras de motocicletas.

A cidade de São Paulo já tinha promovido por conta própria duas experiências de motofaixas, ambas na gestão do prefeito Gilberto Kassab: uma na Avenida Sumaré e outra na Rua Vergueiro. Tornaram-se um retumbante fracasso, aumentando o índice de sinistros em cerca de 150%. Em 2013, a CET produziu um relatório técnico que comprovou a ineficácia da experiência e recomendou que elas não fossem mais feitas. Ainda assim, uma década depois o prefeito Ricardo Nunes bancou a ideia de refazer a experiência.

Dados do fracasso da primeira experiência de motofaixa em São Paulo (Fonte: CET)

O desenho de faixa de motos implantado em São Paulo não faz parte de nenhuma experiência relevante no mundo. O máximo que a prefeitura conseguiu encontrar foram faixas exclusivas no Sudeste Asiático, região de países onde a frota de motos é enorme, assim como também são alarmantes os índices de fatalidades no trânsito. A prefeitura chegou a organizar uma viagem de lideranças dos motoboys à Kuala Lumpur, na Malásia, que implantou algumas faixas exclusivas para motos, que ao contrário da experiência paulistana, são totalmente segregadas. Ao ver imagens da Faixa Azul paulistana, o Presidente do Instituto de Pesquisa de Segurança Viária da Malási,a Shaw Voon Wong declarou que para funcionar, a faixa de motos deve ser realmente exclusiva, ou seja, separada dos outros veículos por barreiras físicas. Ainda assim, a Malásia tem péssimos indicadores no tema. Segundo a OMS, o país conta 23 mortes por ano para cada 100 mil habitantes, enquanto o Brasil tem 19.

Nenhum país desenvolvido com bons números em segurança de trânsito utiliza motofaixas em seus manuais.

Exemplos de motofaixas encontradas pela prefeitura de São Paulo (Fonte: CET)
Faixas de Motos totalmente segregadas visitadas por representantes dos motoboys em Kuala Lumpur, na Malásia

Como a faixa azul tem um desenho que não faz parte do atual manual brasileiro de trânsito, a experiência precisou de uma autorização especial do Governo Federal, através do Senatran, que exigiu o envio de relatórios trimestrais para acompanhar a evolução do projeto.

Esses relatórios não foram divulgados à imprensa, mas os obtivemos por Lei de Acesso à Informação 9 relatórios relativos às Faixas da Av. 23 de Maio e Bandeirantes.

Apesar da experiência já ter quase 2 anos, todos os documentos começam com o mesmo texto, que deixa claro que o projeto ainda não tem conclusões sólidas.

“Os dados apresentados a seguir são dados operacionais, preliminares, coletados pela Central de Operações da CET no momento da ocorrência (…)
Esses dados não tem uma série histórica e não se prestam a avaliação comparativa da evolução da acidentalidade na via em relação aos períodos anteriores (…)

Esta introdução, repetida de 3 em 3 meses ao Governo Federal, deixa claro o que falta nessa experiência: a CET ainda não comprovou que as vias onde a Faixa Azul foi implantada ficaram mais seguras do que nos anos anteriores, quando ela não existia.

Os dados numéricos de acidentes que a CET está enviando à Senatran são apenas anotações de agentes de campo, que precisam ser cruzados com dados da Secretaria de Segurança Pública e de internações do SUS, que é a metodologia aplicada há décadas para fecharmos os números. O próprio sentido oposto da 23 de Maio, que não ganhou Faixa Azul inicialmente, poderia ser tratado como experiência de controle, para comparação.

O fato é que mesmo após dois anos de experiência, a eficácia da Faixa Azul ainda não foi cientificamente comprovada.

Em março de 2023, uma terceira morte na 23 de Maio era publicada no Twitter.

https://twitter.com/BombeirosPMESP/status/1623246604512768002
Notícia de morte de motociclista ocorrida na. 23 de Maio no dia 27/03/2023

O relatório sumiu

Todos os anos a CET publica o seu “Relatório Anual de Sinistros”, que divulga os dados de sinistralidade nas vias paulistanas do ano anterior. É um documento técnico fundamental para entendermos o que está acontecendo nas ruas e avenidas da cidade.

Esse trabalho é tradicionalmente divulgado ainda no primeiro semestre do ano seguinte. A gestão Ricardo Nunes, por motivos que soam estranhos, passou a atrasar esse relatório. Os dados de 2021 só foram divulgados em janeiro de 2023, somente após muita pressão dos especialistas.

Em fevereiro de 2024, quando escrevemos este texto, o relatório de 2022 ainda não foi divulgado. O que aconteceu no trânsito da cidade no ano da implantação da Faixa Azul? Quantas pessoas sofreram sinistros? Quantos motociclistas, ciclistas, pedestres, motoristas morreram ou foram hospitalizados? A Prefeitura não diz e não tem pressa em dizer.

Em agosto de 2023, pela quarta vez os Bombeiros publicaram um sinistro fatal na 23 de Maio, dessa vez um atropelamento.

https://twitter.com/BombeirosPMESP/status/1692570408329884024
Notícia de atropelamento fatal de pedestre na 23 de Maio ocorrida no dia 18/08/2023

A CET alega que os dados vindos da Secretaria de Segurança Pública passaram a ser enviados com inconsistências, o que impediu a consolidação dos dados. A verdade parece ser mais complexa. Na metade do ano a CET extinguiu o departamento interno que fazia o gerenciamento de dados. Sem estrutura interna para esta função, a Prefeitura deverá fazer um acordo com o Governo do Estado para gerir esses dados a partir do próximo ano. Enquanto isso, seguimos sem números confiáveis, justamente em meio a uma experiência viária acontecendo em algumas das principais vias da cidade. Aos especialistas e ativistas, a solução é investigar por outras fontes de informação.

Somente a conta de twitter oficial do Corpo de Bombeiros, desde 2022 publicou 4 sinistros de trânsito com óbito declarado na 23 de Maio, sendo 3 deles de motociclistas, e 1 morte na Avenida Bandeirantes.

Aconteceram na Faixa Azul?

As mil mortes do Infosiga

Com o apagão da prefeitura, o INFOSIGA se transformou na principal referência para os especialistas e ativistas da mobilidade urbana. Trata-se de uma plataforma do governo de São Paulo que desde 2015 compila dados de sinistros em todo o estado. Apesar dos dados não serem consolidados, suas informações fornecem um retrato importante do que acontece mês a mês no trânsito paulista. Esses números, que não são “oficiais” da prefeitura, mas são públicos, apontaram que 917 pessoas morreram no trânsito paulistano em 2022, 175 mortes a mais do que no ano anterior.

Registro do Infosiga de morte ocorrida na Av. 23 de Maio em março de 2023

Os dados preliminares de 2023 apontam para um índice ainda pior, com 987 mortes computadas até o início de janeiro, nos reaproximando da marca das 1000 mortes que tinha sido superada em 2016, na gestão do prefeito Fernando Haddad.

A tendência de queda nos óbitos observada até 2017 reverteu-se nos últimos anos

Em 2 anos, a cidade gerida por Ricardo Nunes saiu de 797 óbitos para chegar a quase 1000, um crescimento que nem mesmo as gestões conservadoras tiveram. Ao olhar especificamente para as mortes de motociclistas, vemos que invenção da Faixa Azul não conseguiu reduzir o número geral. Muito pelo contrário.

2022 e 2023 foram de longe os anos onde mais motociclistas morreram em São Paulo em toda a série histórica do Infosiga.

A Faixa Azul não conseguiu reverter a alta histórica de mortes de motociclistas

Isso faz com que a divulgação de dados negativos seja uma dado sensível para o Prefeito Ricardo Nunes, hoje candidato à reeleição. Ao não consolidar os dados técnicos, Nunes esquiva-se de um problema delicado para a sua imagem.

Na Faixa Azul da 23 de Maio, o Infosiga registrou 4 mortes ocorridas entre 2022 e 2023 — dois atropelamentos e duas fatalidades com motociclistas — as duas batem com postagens de Twitter do Corpo de Bombeiros. Como não temos acesso aos processos completos, não podemos precisar se aconteceram ou não na Faixa Azul.

Outro observação muito importante dos registros do Infosiga é que a implantação da Faixa Azul não reduziu a quantidade de sinistros não-fatais na via. Pelo contrário, o ano de 2023 registrou uma alta histórica, tanto de sinistros com motociclistas quanto com outros veículos.

Sinistros não-fatais na 23 de maio aumentaram após a implantação da Faixa Azul

As mortes ocorridas em 2023 na 23 de Maio também estão registradas no portal SPVIDA, Plataforma da Secretaria de Segurança Pública do Estado, que mapeia os locais mortes violentas e registra na 23 de Maio um “homicídio culposo por acidente de trânsito”

Registro de óbito na Avenida 23 de Maio em Março de 2023 na plataforma SPVida

Esse aumento de sinistros em São Paulo é o provável motivo da gestão Ricardo Nunes ter retirado de seu Plano de Metas a diminuição do índice de mortalidade no trânsito da cidade.

O documento elaborado por Nunes em 2021, pouco tempo após a morte do eleito Bruno Covas tê-lo alçado ao cargo, trazia a ousada promessa de reduzir as mortes de 6,99 a cada 100 mil habitantes para 4,5/100 mil. Ricardo Nunes se abriu mão do compromisso de salvar vidas na segunda metade do seu mandato, e está entregando justamente o oposto: um trânsito bem mais perigoso como há muitos anos não se via.

Prints do Infomapa e da plataforma SP Vida com óbitos recentes nas Avenidas Miguel Yunes, Bandeirantes e Jacu-Pessego

Novas Faixas Azuis implantadas no final de 2023 registraram mortes já nos primeiros meses de implantação

Nos últimos meses 2023, após autorização do Senatran, uma série de novas avenidas ganharam Faixas Azuis: Corredor Tiradentes/Prestes Maia, Faria Lima, Sumaré, Dumont Vilares/Zaki Narchi, Avenida do Estado e Av. Jacu Pessego.

Tanto o Infosiga quanto a plataforma SPVida apresentaram uma série de óbitos com motociclistas nas vias com a nova sinalização. O mês de dezembro foi especialmente trágico, com dois sinistros com morte na Avenida Miguel Yunes, um na Avenida Jacu Pessego e dois na Avenida dos Bandeirantes.

Se alguém acredita que a motofaixa é a panaceia da mobilidade paulistana, os dados dizem outra coisa.

Pelos dados do Infosiga, Bombeiros e Painel SP Vida, até o final de 2023 pelo menos 12 pessoas faleceram em vias com Faixa Azul, sendo 6 delas motociclistas.

Gráfico com os locais de 11 das 12 mortes registradas em vias com Faixa Azul (Fonte: Infosiga)
Tabela com os dados dos sinistros fatais em vias com Faixa Azul (Fonte: Infosiga)

Por que a prefeitura esconde essas mortes e segue propagando a Faixa Azul como solução?

Na segunda parte do artigo, falaremos de como a Faixa Azul faz parte de uma aliança política entre a direita e os motoboys de São Paulo

--

--