As mortes da Faixa Azul

Parte 2 — A aliança política entre os motoboys e a direita

Bicicleteiros
10 min readMar 11, 2024
Representantes do SindimotoSP se confraternizam com o Prefeito Ricardo Nunes em evento e apoio à Faixa Azul

por George Queiroz (Colaboração: Rogério Viduedo)

Que ninguém se engane. Apesar de ser formada predominantemente por jovens de baixa renda, vindo das periferias, a categoria dos “motoboys” sempre teve um histórico conservador. É uma tendência semelhante à de outros trabalhadores motorizados autônomos, como os caminhoneiros, taxistas e, mais recentemente, os motoristas de Uber. Essa percepção foi confirmada por pesquisa recente do DataFolha, que aferiu que 4 em cada 10 trabalhadores de aplicativo se declaram de direita. Apenas 18% deles afirmam estar no espectro político oposto.

Esse não é um fenômeno recente. Ele é anterior à chegada dos aplicativos de transporte e entregas nesta atividade.

Em São Paulo, a cisão definitiva da categoria dos motoboys com a esquerda se deu entre 2013 e 2016, na gestão do prefeito Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores.

Manifestação dos motoboys de 2014 contra a política cicloviária do prefeito Fernando Haddad
Liderança dos motoboys pede que Michel Temer intervenha e destitua Fernando Haddad da prefeitura

Em seu governo, o gestor petista enfureceu a categoria ao adotar uma série de medidas para acalmar o trânsito e reduzir o número de mortes no trânsito. Haddad removeu as motofaixas da Av. Sumaré e Vergueiro (esta última convertida em ciclofaixa), reduziu as velocidades máximas em todas avenidas da cidade para 50km/h, aumentou a fiscalização de infratores de trânsito e construiu 400 quilômetros de ciclovias e faixas exclusivas de ônibus.

Todas essas atuações foram fortemente baseadas nos conceitos consolidados de Visão Zero, adotados com sucesso em todo o mundo. A opção por adotar a ciência deu certo, e em 3 anos os óbitos do trânsito de São Paulo caíram em mais de 30%.

No caso dos motociclistas, o modal que respondia por 440 mortes em 2014 caiu para 311 vítimas em 2017. Isso não foi o suficiente para convencer a categoria. Mesmo com esses números, o SindimotoSP convocou manifestações de contra as políticas de mobilidade urbana do prefeito petista.

Manifestações como esta contribuíram para a derrota eleitoral de Haddad das eleições municipais de 2016, vencida no primeiro turno pelo empresário de direita João Dória Jr (PSDB) com o slogan "Acelera", que criticava diretamente as reduções de velocidades implantadas na cidade.

Panfleto de manifestação de agosto de 2014 contra Fernando Haddad, já pedindo o retorno das motofaixas

Nessas manifestações dos motoboys, ficou claro que a pauta da categoria sempre foi a de aumentar a velocidade no trânsito, mesmo que isso custasse a diminuição de sua própria segurança.

Anos depois, o tratamento dado pela categoria ao prefeito Ricardo Nunes foi totalmente oposto ao que recebeu Fernando Haddad. A popularidade da Faixa Azul, que foi implantada com participação direta de lideranças da categoria, foi imediata. Pela primeira vez em muitos anos, um grupo que sofre com diversos preconceitos de classe teve um pleito diretamente atendido, e sua presença foi oficialmente reconhecida no viário da cidade. O presidente do SindimotoSP, Gil dos Motoboys, passou a ser figurinha carimbada em diversos eventos do prefeito Ricardo Nunes, e dedica suas redes sociais a exaltar a Faixa Azul.

As pesquisas de opinião feitas com a categoria mostraram que o objetivo de Nunes foi alcançado: a Faixa Azul é um projeto político para fidelizar politicamente a categoria dos motoboys.

O prefeito Ricardo Nunes, o secretário Ricardo Teixeira e lideranças dos motoboys de São Paulo

Com o sucesso da Faixa Azul, as políticas de segurança viária adotadas na gestão petista foram congeladas, em detrimento da expansão da Faixa Azul. A Avenida Bandeirantes, por exemplo, ganharia uma ciclovia em 2019, mas o projeto foi adiado e a via recebeu uma Faixa Azul ainda em 2022. O SindimotoSP (que oficialmente representa também os ciclistas entregadores) chegou a oficiar a prefeitura e convocar uma manifestação pela remoção da ciclofaixa da Avenida Rebouças e sua reversão para uma Faixa Azul, o que só não aconteceu pela pressão dos cicloativistas.

Em todo o seu mandato, Ricardo Nunes não fez nenhum encontro de trabalho com os ciclistas da cidade.

Manifestação de motoboys em 2021 pedindo a remoção da ciclofaixa da Rebouças
Motoboy circula em altíssima velocidade na Faixa Azul (Fonte: Youtube)

A velocidade mata

Os dados públicos de sinistros na Avenida 23 de Maio, a primeira via onde foi implantada a Faixa Azul, mostram uma verdade incômoda para os motociclistas — que a principal arma para a redução de mortes é a redução de velocidades.

Números compilados dos relatórios anuais da CET entre 2005 e 2019

A 23 de Maio passou por 2 reduções de velocidade nos últimos 15 anos anos, e cada uma delas diminuiu imediatamente o número de sinistros. Com a via a 80km/h, limite que durou até 2010, chegamos ao número absurdo de 11 mortes em 2007. Em 2015, ano em que a via teve a velocidade reduzida para 60km/h, tivemos ZERO MORTES em toda a via, nos dois sentidos, e desde então o maior número foi de 4 óbitos em 2020. O fato não foi comemorado pelos motociclistas na época.

Estes dados reafirmam a recomendação do mais recente relatório da Organização Mundial de Saúde, que coloca o excesso de velocidade como principal fator para as mais de 1 milhão de mortes que ocorrem no trânsito do mundo anualmente. Hoje, os sinistros de trânsito são a principal causa de morte para jovens entre 5 e 29 anos.

Apesar dos números serem muito claros, os motociclistas são pressionados a rejeitar essas medidas. Não há como culpá-los: a necessidade da velocidade no trânsito imposta pelo trabalho precarizado sobrepõe-se à percepção de que acalmamento que é essencial para a segurança. A Faixa Azul, mais do que a segurança, é um espaço de garantia da fluidez do motociclista — e é essa a verdadeira razão de seu sucesso entre eles. Uma rápida pesquisa nas redes sociais mostra que o tráfego em alta velocidade na Faixa Azul é constante, mesmo durante o dia.

Registros de motociclistas na Faixa Azul trafegando em velocidades que chegam a superar os 140km/h (As Faixas Azuis tem o limite de 50km/h)

Ricardo Teixeira — O vereador da Faixa Azul

Ricardo faz questão de ligar seu nome à Faixa Azul nas redes sociais

O “pai” da Faixa Azul chama-se Ricardo Teixeira, o então Secretário de Transportes de Ricardo Nunes — e atual vereador de São Paulo. Funcionário de carreira das empresas públicas de transporte de São Paulo (CET, EMTU, Dersa) notabilizou-se pela criação do infame “Boneco Ricardão”, um manequim de plástico fantasiado com uniforme de "marronzinho", colocado em guaritas para se fazer passar por um agente de fiscalização — e virou motivo de chacota.

Vereador de São Paulo desde 2004, Teixeira se tornou um político clássico de centro — mudando de partido com frequência (PSDB, DEM, PV, PROS, União Brasil) e sempre buscando espaço na situação. Em 2013 foi Secretário do Meio Ambiente e de Subprefeituras da gestão do petista Fernando Haddad. Em 2021, chegou ao cargo de Secretário de Transportes de Ricardo Nunes pelas mãos de Milton Leite, o nome mais forte da Câmara de Vereadores.

Ciente da importância do marketing na política, Ricardo viu que o caos do transporte pós-Covid 19 não seria solucionado com as medidas conservadoras pró-carro — ele precisava de algo novo para marcar a gestão. Decidiu atender ao antigo pedido dos motoboys de retornar com motofaixas, mas sabia que não poderia fazer da mesma forma que já tinha dado errado.

Para diferenciar essa nova experiência das anteriores, Teixeira decidiu utilizar uma cor fora de padrão, o azul, que é normalmente usado para espaços de acessibilidade, se diferenciando semioticamente do odiado vermelho das ciclofaixas, aquelas criadas por Haddad e que causaram enorme rejeição entre os motoristas conservadores — ele mesmo chegou a fazer pedidos para exclusão de ciclofaixas em seu reduto eleitoral na Mooca.

Ao atender a antiga demanda dos motoboys pelo retorno das motofaixas, Ricardo descobriu que poderia se aliar politicamente a uma categoria importante de trabalhadores, que é numerosa, ocupa todas as periferias da cidade e que tem antigas divergências com a esquerda petista local. Um combo político perfeito.

Nas eleições de 2022, Teixeira lançou a candidatura de sua filha, Aline Teixeira, para deputada estadual. Mesmo não sendo da área de transportes, Aline tentou insistentemente vincular a sua imagem à dos motoboys em busca de votos.

Gil dos Motoboys participou do programa eleitoral da candidata Aline Teixeira

O uso da Faixa Azul para fazer proselitismo político é totalmente escancarado. Em sua redes sociais, Ricardo apresenta-se orgulhosamente como “O Vereador da Faixa Azul” . Em 2023, Teixeira utilizou o espaço eleitoral do União Brasil para chamar motoboys para se filiarem ao partido, que é o “Partido da Faixa Azul”.

Ricardo Teixeira em horário eleitoral gratuito chamando motoboys para filiarem-se ao União Brasil
O Ministro dos Transportes Renan Filho, o Prefeito Ricardo Nunes e o Deputado Federal Baleia Rossi — todos do MDB - na coletiva de extensão da Faixa Azul

RICARDO NUNES E O MDB NO GOVERNO FEDERAL

Nos últimos anos, a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET) tem passado por uma das suas maiores crises. Com o quadro de funcionários reduzido em quase 200 trabalhadores após sucessivos planos de demissão voluntária, a companhia se viu precarizada a ponto de faltar veículos e pessoal para operações cotidianas como a reversão do tráfego de avenidas de grande tráfego. Mesmo com demanda crescente, o orçamento da Companhia tem sido reduzido ano a ano.

As polêmicas envolvendo a empresa não foram poucas. Desde a polêmica inclusão da manutenção dos semáforos no contrato de iluminação pública, em um aditivo bilionário sem licitação ao furto de 823 baterias de veículos no almoxarifado da companhia. Por falta de renovação de contratos, faltaram guinchos, peças para veículos pesados e até uniformes para os funcionários.

A falta de estrutura interna obviamente comprometeu o planejamento da cidade. Obras rodoviaristas de grande porte, como a extensão da Marginal Pinheiros e um novo túnel na Av. Sena Madureira ainda não avançaram para a sua execução. A construção de novos terminais de ônibus e corredores exclusivos não andou e a gestão Ricardo Nunes não vai inaugurar nenhuma nova estrutura para o transporte coletivo. Na execução do plano cicloviário, apenas 31 dos 300 km prometidos pela chapa Covas/Nunes na eleição de 2020 foram feitos nos 3 primeiros anos de gestão, com qualidade que deixa a desejar. O trânsito de veículos, apesar de sempre ser prioridade, bateu novos recordes, aumentando 15% em relação a 2022, chegando a ter 1.349 km de vias engarrafadas em setembro de 2023.

Mesmo com todos esses problemas, praticamente todos os recursos de planejamento da companhia foram direcionados para a Faixa Azul. Na revisão do seu plano de metas em 2023, Nunes prometeu ampliar a experiência para 200 quilômetros na cidade. Proposta ousada para um projeto experimental, cuja expansão dependia de autorização do Senatran, em Brasília.

As dificuldades internas se tornaram um problema para o Prefeito em agosto de 2023, quando vazou a informação de que a CET perdeu o prazo dado pela Senatran para envio dos projetos para a ampliação da Faixas Azul em novas vias da cidade.

Furioso com o fato, Nunes fez cabeças rolarem. Naquele dia, o prefeito demitiu pelo menos 10 funcionários, a começar por Jair de Souza Dias, o presidente da CET. Em seu lugar foi nomeado Hemilton Tsuneyoshi, que já assumiu sob a polêmica de ser sócio de Jair em uma empresa privada de engenharia. Outro nome importante que perdeu o emprego foi o engenheiro Luiz Fernando Romano Devico, que ocupava a diretoria de Projetos e Planejamento. Devico foi o técnico que levou o conceito da Faixa Azul ao secretário Ricardo Teixeira e esteve à frente de sua execução desde o começo.

A um dado momento, o futuro da Faixa Azul parecia incerto.

Mas dificuldades técnicas da CET e a falta de dados consolidados sobre a eficácia da Faixa Azul não foram problemas para o Senatran autorizar em 2023 a ampliação do projeto para mais de 10 novas vias em São Paulo. A solenidade de divulgação da expansão em setembro mostrou que o projeto foi encampado politicamente pelo MDB, partido tanto do prefeito Ricardo Nunes quanto do Ministro dos Transportes, Renan Filho.

“É muito difícil inovar de uma maneira segura e que agiliza a vida das pessoas. Parece um paradoxo agilizar a vida de uma pessoa que precisa fazer uma entrega, chegar mais rápido em casa e ao mesmo tempo garantir a segurança. Esse é o desafio do trânsito moderno de hoje”

Renan Filho, Ministro dos Transportes

Mesmo com o projeto ainda inconcluso, o Senatran passou a divulgar positivamente a Faixa Azul nas redes sociais públicas, inclusive utilizando números que diferem dos que apuramos.

Divulgação do governo
Óbitos na 23 de Maio entre 2019 e 2022 — Fonte: Infosiga

2019 — Sem Faixa Azul
Divulgação: 4 mortes
Infosiga: 3 mortes

2020 — Sem Faixa Azul
Divulgação: 5 mortes
Infosiga: 4 mortes

2021 — Sem Faixa Azul
Divulgação: 3 mortes
Infosiga: 1 morte

2022 — Com Faixa Azul
Divulgação: 0 morte
Infosiga: 2 mortes

A comparação mostra que Nunes usou dados falsos para compor uma peça de ficção, inflando os números anteriores à Faixa Azul e escondendo o que aconteceu depois.

Nessa aliança política entre os motociclistas e os políticos conservadores, a verdade é uma das vítimas.

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Na terceira e última parte deste artigo, falaremos da responsabilidade dos aplicativos de entrega no aumento de mortes de motociclistas

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