Ciclismo por uma questão de classe

Bicicleteiros
7 min readFeb 20, 2020

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Não importa o preço da sua bike, você vai sofrer preconceito ao usá-la

(Sugestão de trilha para a leitura)

Terça feira, 18 de fevereiro de 2020, 6 horas da manhã.

O homem coletivo sente a necessidade de lutar. Pois eis que em plena madrugada, um grupo de cerca de 100 ciclistas, todos em ótima forma, vestidos com suas roupas coloridas de lycra coladas ao corpo e caríssimas bicicletas "speed", se aglomerou em um espaço de pedestres no Campus da Universidade de São Paulo para uma manifestação política. Em punho, várias folhas de sulfite A4, algumas delas caprichosamente emolduradas por cartolinas pretas, formando um "paspatur" que protegia os dizeres bem diagramados, em negrito e centralizados no computador antes da impressão, que diziam:

"USP LIVRE!" "USP PARA TODOS!"

Eduardo Knapp / Folhapress

Fora do contexto, as frases libertárias dos cartazes poderiam facilmente fazer parte de uma balbúrdia esquerdista na Universidade Pública. Mas não, e era um protesto de cidadãos de alta classe. A reinvindicação: o fim da proibição de treinos de ciclismo de alto rendimento após as 6h30 da manhã no campus, medida que vigora desde abril de 2019 e confinou os pelotões de ciclismo a usarem as vias locais somente entre 4:30 e 6:30.

A portaria inicial imposta pela direção da universidade era até mais dura, restringindo os dias de treino a apenas 2 dias por semana. Ainda em 2019 os ciclistas conseguiram negociar a liberação diária para as atividades. O problema é que fora desse horário, o principal local usado para a sequência dos treinamentos era a ciclovia do Rio Pinheiros, que teve que ser interditada após a inundação ocorrida no início do mês em São Paulo. Sem local algum para a suas práticas, restou aos ciclistas tentar pressionar a Universidade de São Paulo para abrigá-los novamente.

Ciclovia do Rio Pinheiros (fotógrafo desconhecido)

A proibição não veio à toa. A imagem dos ciclistas de elite sempre foi péssima dentro da comunidade da USP. Estudantes, professores, direção são quase unânimes em afirmar que a presença desses grupos é inconveniente, especialmente com pedestres, que via de regra não têm sua preferência de passagem respeitada pelos ciclistas. Nem há como, pois os pelotões pedalam próximos uns aos outros e não há como fazer paradas bruscas a todo momento. A USP acabou sendo escolhida por estes ciclistas (e também por corredores) por ser uma via local, segura, calma, arborizada, razoavelmente melhor cuidada do que o resto da cidade, onde a circulação pessoas é bem menos intensa. O campus faz tanto sucesso entre os atletas que a chamada "Praça do Relógio" chegou a ser aferido como o circuito de treinos mais utilizado do mundo, segundo a contagem do aplicativo de monitoramento de performance Strava.

Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Porra, mas não tem outro lugar pra eles pedalarem? Não. Vias expressas como as marginais têm o trânsito de bicicletas proibido, assim como a maioria dos parques da cidade. E não há circuitos fechados na cidade que permitam essa atividade. Da vez anterior que a USP barrou ciclistas, em 2005, os acidentes fatais com ciclistas de elite nas estradas dispararam.

A USP não é pequena. A maior universidade do país tem mais de 90 mil alunos, quase 6 mil professores, e boa parte está lá às 7 da manhã para as atividades dos seus mais de 450 cursos, entre graduação e pós-graduação. A circulação é razoavelmente calma, mas constante — devemos falar dos motoristas de carro que usam o campus como passagem para fugir do trânsito e os levam para lá dentro?

O local parece adequado para os treinamentos, mas não é. Não são raros os relatos de pequenos atropelamentos, quase atropelamentos, xingamentos, fechadas, brigas com carros e pedestres. O fato é que o filme dos ciclistas é bem queimado lá dentro.

Mas peraí, como se resolve o problema? Na canetada?

Quem anda de bicicleta é acostumado com a expulsão territorial. A presença da bicicleta incomoda onde quer que ela esteja. "Sai da rua!", "Sai da estrada", "Vai pro parque!", "Vai pra ciclovia!", "Vai pra calçada!", "Sai da calçada!", "Pára de atrapalhar o trânsito!" são dizeres comuns para quem ousa pedalar nas cidades. Andar de bicicleta, um ato saudável, ecológico, natural e extremamente recomendável, é naturalmente tido pela sociedade como um estorvo. Para o cidadão de bem, justamente aquele que polui, congestiona e de fato causa o caos urbano que vivemos, o lugar do bicicleteiro pode ser qualquer um, menos na sua frente.

Um ciclista pode ter uma bike de 100 mil reais, ser rico o que for, mas no exato momento que subiu na bicicleta ele se transforma em um cidadão de segunda classe. Está embaixo na cadeia social e certamente vai ser deslegitimado em algum momento. Mesmo os ciclistas atletas, brancos, homens, conservadores, bonitos, eleitores do Bolsonaro, lá estão eles mesmo clube onde estão os demais bicicleteiros, os negros, as mulheres, os gays, os comunistas, os ateus, os deficientes físicos, os soropositivos, as domésticas, os indígenas, os favelados, os ladrões de galinha. Quem era inocente hoje já virou bandido .Por muitos e muitos motivos, pedalar é um ato político necessariamente contestatório da ordem hegemônica vigente, especialmente nas grandes cidades.

Voltando à USP: a proibição dos treinos de ciclismo abre um precedente muito perigoso. Como é possível separar qual ciclista veio treinar e qual veio estudar ou trabalhar? Pela roupa? Vamos proibir tráfego de bicicletas de acordo com a roupa? Quem decide qual bicicleta entra ou não entra, o segurança terceirizado da entrada? Essa proibição seletiva é, para princípio de qualquer conversa, uma ilegalidade, pois nasce de uma noção subjetiva do que o ciclista está fazendo com seu veículo. Não se separam motoristas de carro entre os que estão indo trabalhar e os que estão indo para a academia, e da mesma forma não há base no Código de Trânsito Brasileiro para separar ciclistas de mobilidade dos ciclistas de alto-rendimento. Até meados da década de 90, a USP sequer tinha muros em seu entorno, e era um espaço de convivência livre nos finais de semana. A própria ciclovia da Rio Pinheiros (que é gerida pela CPTM) já chegou a tentar proibir treinos de pelotão recentemente, provando que não é de hoje que o preconceito acompanha os ciclistas.

Isso não quer dizer que o cidadão pode fazer o que quer com sua liberdade. Pense comigo: o Usain Bolt pode treinar atletismo no calçadão da Paulista? Pode! É ilegal? Não! É certo? Também não! Seria ilegal proibir o Usain Bolt de entrar no calçadão da Paulista? Seria! Há um ponto onde o legalismo não resolve, o ponto de bom senso há de prevalecer, não proibições burras.

Nessa encruzilhada, a direção da USP tem duas opções:
1 — Instalar um monte de lombadas físicas e expulsar os ciclistas tornando impossível a prática do ciclismo de alto rendimento.
2 — Abraçar o ciclismo de verdade e organizar a atividade, separando faixas, investindo em trajetos seguros, pensando em formas inteligentes de evitar o contato com pedestres, etc.

Já sabemos laissez faire não vai dar certo, mas expulsar e confinar os ciclistas na madrugada também não. Vamos ver o que sai quando pessoas supostamente de alto nível sentam juntos na mesma mesa. Vamos ver se a USP é uma instituição inclusiva ou fechada em si mesma.

Ciclismo e cicloativismo — Pedalar é sempre um ato político

São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade.

A manifestação de ciclistas ricos abre algumas feridas abertas no chamado cicloativismo. Pelo fato de serem de alta classe e pedalarem bicicletas de custo acima dos 5 dígitos, a maioria desta comunidade naturalmente se alinha ao pensamento conservador. Apesar da comunidade ser mais plural do que se pensa, não é raro ver esse grupo ser refratário às causas do ciclismo de mobilidade urbana às quais sofrem diretamente as conseqüências, em geral por associá-las aos grupos políticos de esquerda. Mas ora, o que é o alagamento da ciclovia do Rio Pinheiros que não o resultado das políticas históricas de fechamento dos rios para incentivo do uso do carro particular? O que é a luta da bicicleta se não pensar a ocupação das cidades a partir de uma visão menos destrutiva da natureza? Deveríamos estar juntos nessa.

A luta do movimento cicloativista por mais ciclovias e vias seguras não emocionam muitos atletas, pois estas estruturas não servem para seus treinos, mas sim para os ciclistas iniciantes, crianças, famílias, cadeirantes, skatistas, trabalhadores da bicicleta — quem se importa? Raramente se fazem presentes nas bicicletadas de protesto, aquelas que fecham ruas e bloqueiam o "trânsito" — balbúrdia! Talvez por isso o protesto de ciclistas da USP aconteceu nas calçadas, e não nas ruas, que seria habitat natural das próprias bicicletas e lugar onde todo protesto que se preze acontece. As causas se somam, mas as tribos se separaram e as bolhas pouco se tocam.

O orgulho, a arrogância, a glória enchem a imaginação de domínio.

A cereja do bolo desses tempos sombrios foi o surgimento dos ciclomínions, aqueles que, mesmo sendo cidadãos de segunda classe e vítimas do subjugamento, adotaram o combo surreal de preconceitos representado por Jair Bolsonaro, ao ponto de rejeitar veementemente a bicicleta como pauta política. Alguns estavam lá na USP, se manifestando, apesar de apoiarem governos inclinados à privatização das universidades públicas. Mas não foi Bolsonaro que disse que “As minorias que se adequem ou simplesmente desapareçam?”. Então, vamos parar de mimimi e vitimismo e lutar para que as ruas (não só as da USP) sejam seguras para todos?

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