Coloquem os carros de quarentena — agora e para sempre

Bicicleteiros
8 min readApr 3, 2020

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A cultura individualista do automóvel particular precisa sumir de nosso convívio imediatamente — mas também depois da pandemia

Segunda-feira, 30 de março de 2020. Terceira semana de confinamento.

Foto: Kelly Lacy

Mas logo de manhã tive que sair de casa, por um motivo médico urgente e necessário: uma súbita e inoportuna dor de dente que me custou uma noite inteira de sono. Sim, a vida em confinamento não impede que o nosso corpo nos pregue outras peças

Na clínica odontológica recebi o diagnóstico: estou com CORONA.

Calma. No caso, a corona chama-se PERICORONATITE, uma inflamação de gengiva que ocorre no dente siso — sim, o dente maldito que terei que removê-lo mais pra frente.

Tratamento emergencial feito, seguindo todos os protocolos de higiene e segurança. Pedal que segue, vou voltando pra casa.

- VAI PRA CICLOVIA, P*&&@!!!!!!!

Ouvi esse indefectível grito quando pedalava na Ponte Eusébio Matoso, que cruza o Rio Pinheiros em direção à zona oeste da cidade. Tinha sido a segunda fina perigosa em menos de 100 metros. Eu estava na minha bicicleta, e o agressor, que vou chamar de Sr. Jair, seguia confortavelmente em seu carro esportivo, curiosamente com uma máscara de proteção no rosto. Mal sabe o Sr. Jair que o maior sonho dos ciclistas paulistanos é justamente ter suas pontes com ciclovias que nos distancie de imbecis como ele.

Quem não usa bicicleta nas cidades mal sabe o que é uma FINA, então não custa explicar. A fina é o termo popular para a transgressão do artigo 201 do Código de Trânsito Brasileiro, que exige que os veículos motorizados mantenham a distância mínima de 1,5m das bicicletas quando as ultrapassam. Sim, existe uma lei para os carros manterem distanciamento social das bicicletas. Mas quem disse que obedecem?

Essa tinha sido só a quarta vez que tinha saído de casa por bicicleta desde o início da quarentena, em quase 3 semanas. Nas outras, em viagens rápidas a mercados e farmácias, ficou claro para mim que os motoristas de carro estão mais imprudentes do que nunca. O fato das ruas estarem bem mais vazias nesses tempos (o trânsito de São Paulo teve queda de 88,6%) é um incentivo à alta velocidade. E isso não é somente uma observação pessoal.

Na cidade de Nova Iorque, apesar do tráfego de veículos ter caído em mais de 50% ainda no início da crise, os radares eletrônicos de velocidade seguiram emitindo praticamente a mesma quantidade de multas. Ou seja, os poucos carros que foram às ruas estão em cometendo infrações em dobro. O mesmo fenômeno foi observado em outras cidades americanas, inclusive com relatos de rachas acontecendo nas rodovias.

No Brasil, apesar dos governos estaduais e municipais terem fechado o comércio não essencial e pedirem para que a população entre em quarentena, não existe qualquer restrição à circulação de veículos automotores. Pelo contrário, em São Paulo o rodízio de carros foi suspenso por tempo indeterminado e o Governo Federal liberou pessoas para dirigirem com CNH vencida. As medidas de isolamento pedem que as pessoas fiquem em casa, mas o uso do carro particular é praticamente estimulado pelo poder público como parte segura do distanciamento social. Assim, o cidadão de bem fica protegido em seu escudo metálico, e segue livre para poluir e ameaçar ciclistas de morte, enquanto aqueles que não têm recursos financeiros para ter e manter um carro se aglomeram no transporte público ou sofrem com a imprudência motorizada. A lógica individualista da cultura do automóvel mantém-se intocada e até incentivada, mesmo em tempos de um esforço global para se vencer uma pandemia de proporções não vistas há mais de 1 século.

Não é por acaso que a segurança individual dos carros particulares se transformou em símbolo da extrema-direita. Insatisfeitos por perderem parte de suas fortunas com a pandemia e incapazes de dispensar a própria criadagem, o Bolsonarismo embarcou na estapafúrdia teoria terraplanista de que a pandemia é só uma gripezinha e devíamos todos voltar a produzir como se nada estivesse acontecendo. Para protestarem pelo fim das medidas de isolamento, foram convocadas em todo o Brasil carreatas de protesto, onde beócios de alta classe mantinham-se no escondidos conforto de seus bólidos, matando a saudade de se engarrafarem, poluindo o ar e exigindo que o proletariado voltasse a produzir riqueza para eles. Nada mais metafórico do que representa o individualismo da direita: protegidos por uma máquina de proteção individual caríssima, tomam as ruas pensando apenas em seus negócios, ignorando o debate científico (alô terraplanismo!) e o caráter necessariamente coletivo do combate à pandemia. Passeata, nem pensar.

Oi?

Pedestre e ciclistas: As Genis da mobilidade

Enquanto isso, aqueles que se deslocam sem queimar gasolina sofrem um escrutínio desproporcional. Na região do Minhocão, no centro de São Paulo, pedestres que caminham sobre a via (em deslocamentos necessários) são xingados e até agredidos fisicamente com balões de água e ovos por moradores dos prédios vizinhos. Não se vêem notícias de agressões parecidas a quem se desloca de carro ou até mesmo de transporte público— por necessidade ou não. O próprio desenho urbano de nossas ruas, com ruas largas e calçadas estreitas, via de regra impede que o pedestre se locomova com distanciamento correto de outros.

Na Europa, onde a pandemia já colapsou sistemas de saúde de alguns países, o lockdown completo teve que impor condições duras aos ciclistas, especialmente os que usavam a bicicleta para descolamentos de lazer ou treinos. Pedalar sem justificativa e para longe da sua vizinhança passou a ser proibido na Itália, na Espanha e na França, sob a ameaça de multas.

A justificativa nesse caso faz todo o sentido: a superlotação repentina dos hospitais resultante da pandemia faz com que não sobre nenhuma estrutura para receber ciclistas vítimas de acidentes. Sem tempo, irmão. Portanto, arriscar-se no asfalto sem uma clara justificativa, mesmo que não seja um comportamento de alto risco de infecção pelo Covid-19, é pra lá de indesejável em um mundo sem vagas de hospital.

Tá legal, aceitemos o argumento.

Mas peraí!

Essa lógica também não deveria ser aplicada ao transporte motorizado?

A ideia de que o ato de pedalar é perigoso per se é capciosa e nos acompanha muito antes da pandemia. O verdadeiro risco de pedalar não está no uso da bicicleta em si, mas sim no convívio desproporcional com motoristas imprudentes. 99,7% das mortes de ciclistas ocorrem em colisões com veículos motorizados. Ou seja, a cada 300 ocorrências fatais, 299 têm a participação direta de carros, motos, ônibus ou caminhões. Então, se a questão é economizarmos leitos hospitalares, seria absolutamente necessário que o tráfego das máquinas mortíferas fosse rigorosamente controlado. Lembre-se que em São Paulo (e certamente em outras capitais), 60% das viagens de carros percorrem distâncias curtas, de menos de 5km, portanto poderiam claramente ser trocadas por modais menos danosos à sociedade.

É hora de visão zero

O sistema de saúde brasileiro sabe muito bem do tamanho da tragédia provocada pelos automóveis no Brasil. O Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, afirmou em coletiva no dia 30/03 que as medidas de isolamento já diminuíram o número de internações pelos chamados acidentes de trânsito. Não é de hoje que tais incidentes (que na verdade não são acidentes, mas sim crimes) sempre foram responsáveis por ocupar mais da metade dos leitos de UTI no Brasil, e geram um enorme custo não só ao sistema de saúde mas também à assistência social e à produtividade da economia. Essa é a hora de reduzirmos as mortes de trânsito a zero. E quando falamos em zero não é uma utopia. O conceito de Visão Zero, criado pelo governo da Suécia na década de 90, reza que nenhuma morte de trânsito deve ser aceitável. Em 2019 cidades como Oslo e Helsinki chegaram muito próximo a esse objetivo, zerando mortes de ciclistas e pedestres, fazendo algo muito simples: restringir fortemente a circulação de carros, eliminando ao máximo o contato destes com seres humanos desprotegidos.

Quem se preocupa de fato com a saúde pública tem que imediatamente começar a pensar na restrição ativa do transporte individual poluente. Mas infelizmente temos um presidente que trabalhou em todo o seu mandato para o aumento das mortes no trânsito.

A pandemia e a crise climática

Os carros não matam somente pelos incidentes de trânsito. Eles também são responsáveis por grande parte da poluição atmosférica das grandes cidades, que comprometem os pulmões de toda a população e sempre resultou em um grande número de mortes mesmo antes da pandemia. A Organização Mundial de Saúde calculou no ano passado que 7 milhões de pessoas morrem anualmente em virtude da poluição, isso inclui 1/4 de todas as mortes de adultos por doença cardíaca e por acidente vascular cerebral (AVC), quase 1/2 das mortes por doença pulmonar obstrutiva crônica e quase 1/3 das mortes por câncer de pulmão.

É dramático pensar que a Covid-19 é um vírus que ataca diretamente o sistema respiratório, e que pessoas com capacidade pulmonar comprometida em tese podem ser vitimadas mais gravemente. Em cidades com índices absurdos de poluição, como São Paulo, não seria leviano da minha parte afirmar que este cenário aumenta o risco de todos.

São Paulo Foto: Ronny Santos/Folhapress

As medidas de confinamento produziram uma incrível melhora da qualidade do ar em todo o mundo. Em São Paulo, a mudança é visível a olho nu — esse inimigo não é tão invisível assim. Na China e Itália, as imagens de satélite mostrando o antes e o depois deixam claro que a mudança nos índices não foi pequena. As primeiras estimativas indicam que a desaleração da produção (e do trânsito) pode reduzir as emissões globais de CO2 em cerca de 7%, o que nos aproximaria de cumprir as metas do Acordo de Paris para mitigar a crise climática. Não é pouca coisa.

Itália
China

Mas de que adianta reverter este malefício e retomarmos a mesma lógica de produção ao fim da pandemia? O pesquisador Marshall Burke, da Universidade de Stanford, calculou que a redução da poluição somente na China nos 2 primeiros meses do ano salvou 20 vezes mais vidas por lá do que as mortes creditadas ao Covid-19. Isso quer dizer que a pandemia é boa coisa? Claro que não! Ele apenas nos demontra que a operação “normal” da economia global esconde enormes custos à saúde pública, e a pandemia acabou por escancarar esses custos.

Mas o que isso tem a ver com a fina que o seu Jair me deu na Ponte Eusébio Matoso?

Tudo.

Precisamos fazer que as pessoas deixem seus carros em casa não só agora, mas também depois.

Por isso, fique em casa. Se tiver que sair, vá de bicicleta.

E desligue seu carro – se puder, para sempre. É questão de saúde pública.

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