O Bikewashing da Volvo e a mercantilização da vida do ciclista

Bicicleteiros
7 min readApr 10, 2021

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Antes de ler esse texto, peço que veja esse novo comercial do Volvo XC40. Nessa belíssima produção, a Volvo defende a coexistência pacífica nas ruas entre seus carros e vários ciclistas, escrevendo na tela que “as ruas pertencem a você, ciclista!” Uma montadora de carros, quem diria, colocou a mão na consciência agora é a nova melhor amiga do ciclista! Será?

Ow! Se liga! Claro que não, né? Quem pedala nas ruas sabe bem que esse mundo de Poliana não existe em lugar nenhum. Tomar fino e xingo é parte da nossa vida nas ruas, especialmente vindos de quem tem carrões como esse.

Mas por que diabos uma montadora de automóveis de luxo gastaria dinheiro em um comercial corporativo para se colocar em pé de igualdade com ciclistas e pedestres?

A palavra que define essa campanha é BIKEWASHING, técnica de marketing manjada do “capitalismo verde”, que consiste associar a imagem de uma empresa à bicicleta a ao ciclista para “limpar” a sua imagem ambiental. O fato de uma empresa vender produtos altamente poluentes como carros particulares fica escondida atrás da cortina de fumaça das boas intenções de “amiga do ciclista”. Mas será que isso muda o mundo?

É claro que a Volvo, montadora sueca de carros de altíssimo padrão, não tem porque dirigir a palavra a você, bicicleteiro da barra forte. No Brasil, seus modelos tem preços que começam em 250 mil reais e vão até 450 mil reais. Você provavelmente não é público alvo desses produtos.

Vai um Volvo ai?

As ruas do mundo continuam sendo território de domínio dos motorizados, e pedalar continua sendo um ato de coragem. O que seus marqueteiros tentam com esse tipo de jogada publicitária é se apropriar da imagem feliz, saudável e ambientalmente amigável do ciclista para vender ao público justamente o que um carro nunca será. Mas no mundo encantado da Volvo, seus carros elétricos estão até acabando com o aquecimento global — basta todo mundo pagar 250 mil pra isso.

Volvo salvando o mundo

Foi-se o tempo em que o “prazer de dirigir” vendia carros. Desde os anos 50 esse prazer automobilístico sempre foi diretamente ligado à velocidade, e as cidades de todo mundo abriram alas para as máquinas mortíferas passarem. Mas o ciência provou que a velocidade dos carros era diretamente ligada às mortes no trânsito. Somente em 2019, 1.3 milhões de pessoas morreram em incidentes no trânsito. Quando as cidades civilizadas entenderam que restringir a velocidade era uma medida básica de segurança, e assim fizeram, a indústria automobilística precisou mudar o foco de seu marketing para vender segurança. Mas a segurança de quem? Somente do cliente que está dentro do veículo, óbvio. Com air bags frontais, air bags laterais, detectores disso e daquilo, e modelos cada vez maiores, o carro particular deixou de ter seu desenho baseado na leveza para se aproximar do design dos tanques de guerra. Vence a batalha quem tem as melhores armas.

Como bons sociais-democratas nórdicos, a Volvo de fato se esforça em ser uma empresa do bem. É constante financiadora de pesquisas de segurança no trânsito. Em 2017, lançou um programa chamado Visão 2020, com a meta que em 2020 nenhuma pessoa morra dentro de seus carros. Ou seja, uma versão individual de Visão Zero, somente para quem comprou um Volvo. Se alcançou o objetivo, não sabemos.

A Volvo salva a vida de todo mundo que está dentro de um Volvo

No mundo idílico da publicidade da Volvo, utopia de uma convivência pacífica entre carros e bicicletas que ali só é possível através de um equipamento eletrônico que ELES vendem. Ou seja, a tecnologia é vendida para eximir o nobre condutor da atenção necessária ao volante e passa o recibo de que os outros carros (os carros pobres que não têm a tecnologia de detecção de ciclista) são inerentemente perigosos para o ciclista. Ao mesmo tempo, dá ao condutor um gostinho do que será o futuro da direção autônoma.

Não que os produtos de detecção de ciclistas da Volvo sejam confiáveis. O primeiro carro autônomo a protagonizar um atropelamento fatal era deles. Em março de 2018, um Volvo XC90 autônomo atropelou Elena Herzberg, que atravessava uma via em Temple, Arizona, empurrando uma bicicleta, desmontada. Para surpresa de todos, o veículo estava acima do limite de velocidade máxima da via e o carro sequer a diminuiu antes de atingir a vítuma. Os sensores simplesmente não interpretaram a presença da pedestre corretamente, ou seja: até carro autônomo já aprendeu a dizer "Não vi" depois que mata um ciclista. Por conta desse crime a Uber foi forçada a recolher sua frota de carros autônomos e rever todo o seu cronograma futuro de dispensar os serviços de seus trabalhadores humanos.

Será que ruas realmente pertencem aos ciclistas?

As bicicletas tem sido a maior das dores de cabeça para engenheiros de veículos autônomos. Segundo eles, a detecção de bikes tem sido o obstáculo mais difícil para o avanço da tecnologia. O porte pequeno, a variedade enorme de formas de bicicletas e a razoável imprevisibilidade dos ciclistas tornaram o modal um enorme desafio técnico para a programação dos sensores.

A liberdade dos ciclistas está atrapalhando os engenheiros da Volvo

Ciente do problema, a Volvo chegou propor uma solução milagrosa: capacetes inteligentes! No mundo mágico da Volvo, todo ciclista seria obrigado a usar um capacete com chip, que mandaria um sinal ao computador do carro para que ele reconheça a sua existência. Ou seja, basta todo mundo ter um carro da Volvo de 250 mil reais e todo biker ter um capacete chipado não teremos mais atropelamentos de ciclista, não é legal? Ah, o capacetismo…

O pior é que essa não foi a última vez que a Volvo tentou resolver criativamente a segurança dos ciclistas. Em 2015, seus marqueteiros inventaram a “Volvo Life Paint” um spray feito para fazer com que as bicicletas brilhassem no escuro. Assim, seriam melhor vistos à noite pelos desatentos motoristas da madrugada. Para a Volvo, dirigir em velocidade compatível, com atenção e obedecer as regras do trânsito não é suficiente: é preciso que o ciclista se torne um objeto alegorico para pular aos olhos do motorista avisando de sua presença na rua. Depois da campanha de lançamento do produto ganhar diversos prêmios de publicidade e rodar o mundo do ciclismo, o comercial foi banido no Reino Unido por ser propaganda enganosa: o produto utilizado era feito para tecidos e não tinha boa adesão ao metal das bicicletas. Ou seja: pura enrolação.

Volvo lançando spray para os ciclistas não serem mortos pelos motoristas de Volvo

Entra ano e sai ano, a Volvo sempre tem uma nova solução para não matar os ciclistas com seus carros. Mas nunca trazem as que os urbanistas sabem que funcionam.

Reduzir as velocidades das vias? Construir ciclovias, ciclofaixas e vias exclusivas para o transporte ativo? Reforçar a fiscalização de infratores? Desenhar as vias segundo os conceitos modernos de segurança?

Bobagem! Pra que tudo isso se o meu Volvo tem um detector automático de ciclistas? Olhem, criamos um smart-helmet pra você salvar a sua vida de morrer atropelado pelo meu produto! Porque você não besunta sua bicicleta com um spray para que eu não te atropele? Comprem!

E assim, a indústria automobilística vende a peso de ouro a solução dos problemas que ela mesmo criou. Atropelar um ciclista é um crime, e o cumprimento da lei jamais pode ser negociado. A segurança do cidadão livre, desmotorizado, que deveria ser uma questão coletiva de política pública, é mercantilizado através de um “feature” opcional de um carro de luxo. Quem tem dinheiro, compra. Que ótimo é ter um Volvo e saber que eu não preciso me preocupar em atropelar ciclistas, e posso me concentrar no “prazer de dirigir”. Que ótimo seria o mundo onde todos tivessem 250 mil biroliros pra comprar um fucking Volvo.

A verdade é que os planejadores urbanos, dos grandes centros urbanos da Europa às novas cidades planejadas da China até a Arábia Saudita já sabem que a segurança das pessoas só de fato quando eliminamos ao os carros do horizonte. E isso não é utopia, é realidade.

Oslo — 2016
Oslo — 2019–0 mortes de ciclistas e pedestres

O mundo fantástico da Volvo dificilmente existirá. Eu que não caio na Síndrome de Estocolmo de achar que meu opressor é meu amigo.

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