O capacete frouxo de Bolsonaro e o novo Código de Trânsito
Sua displicência no trânsito é a cara do falso liberalismo que ele representa
Na última segunda feira de carnaval, dia 24 de fevereiro, o Presidente da República resolveu dar uma voltinha de moto por Guarujá pra espairecer. Talvez estivesse de cabeça cheia depois de ver e ouvir tantas críticas ao seu governo, tanto nos desfiles das escolas de samba quanto nos blocos de rua.
Até aí tudo bem.
Acontece que perceberam que ele estava o tempo todo cometendo uma infração de trânsito — seu capacete estava com o engate solto, ou seja, arriscando a sair de sua cabeça no caso de uma queda. Andar de moto com um capacete solto na cabeça é uma infração menor — desde que você não caia da moto, é claro. Aliás, Bolsonaro é reincidente na infração e sua CNH já está vencida há 5 meses. Nesse rápido desfile carnavalesco, o caricato presidente fez questão de sambar na cara do Código de Trânsito.
Ah, mas que bobagem! Vocês são muito chatos e implicantes!
Nos desculpe, Presidente. Mas se queres que ninguém veja seus erros, é só renunciar ao cargo e sair da vida pública, para gozar de sua merecida aposentadoria após tantos anos de trabalho árduo no funcionalismo público.
Esse pequeno “deslize” do nosso Chefe de Estado em seu inocente passeio de moto de feriado é um pequeno exemplo de como ele encara a segurança no trânsito e até mesmo o exercício de seu cargo. Para Bolsonaro — assim como todos os tios de churrasco que ele representa — conduzir um país ou veículo motorizado é uma tarefa trivial, uma atividade simplória que não requer conhecimentos complexos ou protocolos de segurança rígidos. Para esse tipo de gente, guiar veículos automotores de forma segura é uma habilidade individual, e não um acordo social com os demais ocupantes do espaço público. Dirigir para ele é somente um prazer, um direito, e não o exercício de uma atividade inerentemente perigosa não somente para si, mas para todos os que estão a sua volta — especialmente pedestres e ciclistas, maiores vítimas das irresponsabilidades de condutores motorizados.
Ao mandar desligar radares, cancelar o seguro obrigatório, propor o aumento da validade das habilitações, aumentar a tolerância a infrações, defender o fim das auto-escolas e intervir em um órgão técnico por conta de tacógrafos e equipamentos de fiscalização de gasolina, Bolsonaro afirma e reafirma que a segurança viária não é uma questão de segurança pública — e por isso ele tanto trabalha para transformar o espaço asfaltado em terra sem lei. Dirigir é um clássico exercício de pequeno poder, e nessa ótica os protocolos de segurança contidas na Lei de Trânsito apenas atrapalham o idílico "prazer de dirigir" cantado em verso e prosa pela publicidade da indústria automobilística, beneficiária histórica dos maiores incentivos fiscais governamentais. Para Bolsonaro e os demais “liberais”, dirigir de forma segura ou não é algo que deve ser facultado ao condutor, justamente aquele que está com uma máquina mortífera nas mãos. Milton Friedman, famoso economista e principal ideólogo da chamada "Escola de Chicago" de liberalismo econômico, defendia que o uso de cintos de segurança e capacetes sequer deveriam ser obrigatórios por lei— para ele, o próprio livre mercado trataria de trazer maior segurança aos seus produtos (o que há muito foi comprovado que não acontece). Por sorte, ele foi ignorado nesse assunto e as legislações de trânsito são cada vez mais rígidas nos países desenvolvidos.
É interessante ver essa visão prevalecer em um governo militar, que em tese teria o controle da ordem pública como norte ideológico. Bolsonaro propositalmente anarquiza um trânsito que mata tanto quanto as armas de fogo. Os absurdos índices de mortes nas ruas e estradas são vistos sempre como resultante de erros individuais, e não como a coroação de décadas de políticas públicas de incentivo à motorização — formatadas para lucro direto das montadoras e empreiteiras e exclusão da população periférica. Mas quando se fala do crime “tradicional”, em geral crimes patrimoniais cometidos por jovens negros em vulnerabilidade social, o discurso imediatamente muda para a defesa da presença ostensiva do estado, da tolerância zero, do “excludente de ilicitude” e do encarceramento em massa. Enquanto defende o exercício pleno e impune dos privilégios dos ricos nas ruas (sim, ter e manter um carro é algo caro, portanto elitizado), Bolsonaro avança sobre os direitos dos trabalhadores pobres. Assim, ele exacerba as contradições do liberalismo econômico — vende liberdade aos “cidadãos de bem”, mas na verdade amplia as desigualdades econômico-sociais. Quem tem dinheiro ganha o privilégio de comprar sua segurança, entre airbags frontais e laterais, seguros particulares, previdências privadas e condomínios fechados e usufrui de um estado frouxo que se exime da obrigação de fiscalizá-lo. Na outra ponta, o pobre vulnerável (condenado a ser ciclista ou pedestre) vive em um ambiente inseguro, via de regra sendo atacado pelo comportamento “livre” dos motorizados e da leniência da justiça. Esses que esqueçam seus direitos, seguros ou qualquer assistência pública digna — recolham-se às suas senzalas e aceitem sua condição de inferioridade.
A cada voltinha de capacete solto, Bolsonaro mostra que governa com uma conveniente displicência, afrouxando o Estado nos pequenos detalhes. Ao povo que não tem sua escolta, resta aguentar a ressaca de fim de carnaval.