Pra quê pedalar pelado?

Bicicleteiros
5 min readMar 12, 2020

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Ou: o choque dos corpos livres em tempos de intolerância

“Você aí parado, vem Pedalar Pelado!”

No dia 14/03, sábado, às 20h, na Avenida Paulista, você vai escutar esse grito na 13a PEDALADA PELADA. O protesto é a versão brasileira da World Naked Bike Ride, que ocorre em diversos países do mundo desde 2004. Nesse protesto, ciclistas ocupam as ruas totalmente nus ou em trajes mínimos, geralmente com mensagens pintadas em seus corpos, pedalando e chamando a atenção para a fragilidade dos seus corpos no trânsito, sem nenhum tipo de apelo erótico. O ato, polêmico e anti-moralista por definição, já até passou por pequenos entreveros com policiais, mas na maioria das vezes transcorreu pacificamente. Mas eram outros tempos.

2a Pedalada Pelada — 2009

Dessa vez, a Pedalada Pelada de 2020 acontece em um tempo diferente para manifestações libertárias. O país é hoje governado pela extrema-direita, que sempre fez questão de colocar as chamadas “pautas morais” como base de seus discursos de seus inúmeros preconceitos a qualquer manifestação humana que não se encaixe nos padrões hegemônicos “judaico-cristãos” dos cidadãos de bem. Sim, estamos num país que colocou a caretice, a intolerância e o fundamentalismo evangélico no alto do poder.

Mais amor, menos motor!

A metralhadora de preconceitos “morais” do Bolsonarismo atira para muitos lados. O ódio espuma da boca ativamente contra feministas, negros, LGBTs, cineastas, cantores, sindicalistas, jornalistas, indígenas, universitários, cientistas, médicos e qualquer um que ofereça uma mínima crítica inteligente ou comportamento dissonante, para imposição de uma visão fundamentalista sociedade. “As minorias que se adeqüem ou desapareçam”, bem ele avisou.

Ciclistas nunca foram citados nominalmente por Bolsonaro (aliás, o que mais tem no rolê é ciclomínion), mas assim mesmo são alvos de sua necropolítica. Atendendo à elite carrocrata que não aceita se deslocar de A a B sem queimar combustíveis e poluir o planeta, na área de mobilidade Bolsonaro tem feito exatamente o contrário melhores práticas públicas internacionais de segurança viária, beneficiando a classe motorizada e aumentando a insegurança nas ruas e estradas. Desligando radares de fiscalização, propondo maior tolerância a infratores de trânsito e até mesmo cortando verba do SUS para atendimento a vítimas de acidentes, os ciclistas estão na mira do bolsonarismo da mesma forma que qualquer grupo não hegemônico. A violência no trânsito brasileiro mata tanto quanto as armas de fogo e é uma catástrofe humanitária. Não por acaso as mortes nas estradas federais apresentaram aumento do número de mortes após longo período de queda. Ele próprio é um motorista imprudente, que recentemente saiu guiando motocicletas mesmo com a habilitação vencida e cometendo infrações impunemente. Nesse caso a lei não parece ser pra todos, não é mesmo?

Voltando à Pedalada Pelada. A edição desse ano acabou coincidindo com dois atos díspares que refletem a tensão política de nossos tempos.

No mesmo dia (e coincidentemente no mesmo local, mas em horários diferentes), acontecerá um grande ato em memória de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada há dois anos — justamente no dia 14/03. O crime ainda não teve seu mandante revelado, mas já se sabe ter sido cometido por paramilitares cujas relações avizinham-se da família Bolsonaro. Como é público e notório, a família sempre foi simpática às atividades dos grupos milicianos que dominam diversas regiões do Rio de Janeiro. Quer ver um bolsomínion espumar de raiva, cite o nome de Marielle.

A morte também é temor freqüente aos ciclistas. A própria Avenida Paulista que sediará os protestos é o local onde 2 mulheres cicloativistas foram assassinadas, Márcia Prado e Julie Dias — ambas homenageadas com “ghost bikes”. A avenida tem hoje uma ciclovia icônica, resultante da luta cicloativista que foi atendida pelo então prefeito Fernando Haddad, que posteriormente foi adversário derrotado por Bolsonaro nas eleições de 2018. Como já foi provado por números contundentes, as ciclovias salvam vidas. O cicloativismo, assim como todos os movimentos sociais, nasce da mais justa luta pela vida humana. A noção de corpo político, presente nos movimentos que Marielle Franco representava, podem facilmente ser observadas no ato nada bem visto de pedalar nas ruas. Pedalamos contra a corrente.

Julie Dias assassinada

O acirramento ideológico é tão pesado se fará presente de forma muito clara logo na manhã seguinte. Horas após a Pelada Pelada e do ato em memória de Marielle, a mesma Avenida Paulista será ocupada por um protesto pró-Bolsonaro que, acreditem, propõe o fechamento do Congresso e do STF. O berrante da chamada Marcha do Orgulho Gado foi convocada pelas correntes mais radicais do Bolsonarismo e foi abertamente endossada pelo próprio presidente, a ponto dele colocar a Secretaria de Comunicação do Governo para ajudar na divulgação do convescote. Esses bolsomínions mais loucos juram que o notório fracasso do governo é resultado não da incompetência do executivo, mas do não alinhamento dos demais poderes ao autoritarismo de Bolsonaro, um notório saudoso da ditadura militar brasileira que paralisou os processos democráticos no país por 21 anos. Sair às ruas para pedir a volta do regime ditatorial é a fina flor do que este bando de malucos representa. Que moral tem um intervencionista integralista pra falar do meu bilau de fora?

Obscenidade

Afinal, o que é imoral? Pedalar como veio ao mundo pedindo para não ser morto ou sair armado até os dentes pedindo a volta da ditadura? Marchar com mulheres pedindo justiça para uma mulher negra da periferia assassinada ou sair no domingo para exaltar torturadores, milicianos e pedir o fim da democracia? As escolhas cada um faz, e para as minhas eu vou exigir respeito.

P.S.: A manifestação ocorre bem no momento em que a pandemia mundial do Coronavírus é declarada e começa a chegar ao país. Apesar da epidemia ainda não ter se alastrado aqui, vale lembrar: pedalar é um ato seguro.
P.S. 2: Numa decisão mais do que acertada, a Pedalada Pelada acabou sendo cancelada pela página que convocava o evento pelo Facebook devido à escalada repentina de casos do Coronavírus em São Paulo nessa semana. Apesar do cancelamento, alguns poucos ciclistas foram ao local e se manifestaram. Não fui, e a escalada de casos nas semanas seguintes mostrou que o cancelamento era a atitude certa a ser tomada.

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